segunda-feira, 20 de junho de 2016

NÃO TE FADIGUES LOGO, TENS TRABALHO PARA TODA VIDA!


Peço licença a Cecília Meireles para poder discorrer esse texto. 
Certa vez quando estava acompanhado da minha mãe no centro de oftalmologia do HC de São Paulo, fui acalentado por uma enfermeira voluntária, eu não queria usar tampão nos olhos de jeito nenhum, aquele treco coçava, sem dizer na agonia que dava enxergar as coisas com um olho só. Mas era necessário, os médicos diziam que por conta da luz da incubadora ter ficado muito tempo nos meus olhos e ter desenvolvido estrabismo por conta disso, eu deveria usar tampão para se prevenir de catarata. “Catarata?” Perguntei a minha mãe, “Igual aquela do Niágara no desenho do Pica-Pau?” 
-Não João, igual aquela que o seu avô operou ano passado, lembra?
- Mãe?
- O que foi?
-Quantos anos eu tenho?
-4 anos, por quê?
-E quantos anos o vovô tem?
-84
- Então por quê nós não voltamos daqui uns 80 anos?
Quando me contaram o que era catarata pela primeira vez eu fiquei morrendo de raiva, como pode eu com só 4 anos de idade, correr o risco de ter uma coisa que só acontecem com as pessoas velhas? O problema é que quando eu entendi realmente o que acontece na catarata a raiva passou na hora, até porque achei “super normal” correr o risco de ficar cego. As pessoas tem uma mania besta de assustar as crianças pra conseguir o que elas querem. “ou você usa o tampão, ou você vai ficar cego” disse uma oftalmologista megera que me atendeu. Eu comecei a entrar em desespero, gritava pra todos os cantos do mundo que eu não queria ficar cego, que eu queria assistir desenhos e brincar. Pensava comigo mesmo: “Caramba! Além de não andar, ainda vou ficar cego? Isso não é justo!” lembro que quando eu disse isso pra minha mãe chorando , ela deu risada! 
-Então é disso que você está com medo? Ela perguntou.
Um outro oftalmologista que estava ouvindo a conversa durante horas e que tinha me esperado parar de chorar, estava segurando um pacotinho com tampões numa mão e um frasco de colírio na outra, ele ficou parado feito um poste, numa calma de dar inveja a qualquer um. Ele era tão sereno e calmo que por conta disso foi meu oftalmologista por 14 anos.
-Qual é o seu nome?
- João Paulo
- João, você sabe o que eu faço?
- Você é Oculista, não é?
- Não, eu sou oftalmologista, eu sou médico dos olhos, o oculista é quem lê minhas receitas e faz o seu óculos.
- E o que o tampão tem haver com vocês dois?
Ele riu, e me disse que o tampão era necessário pra prevenir algo mais grave, que eu não ficaria cego se usa-se o tampão, muito pelo contrário, o risco de ficar cego seria maior se eu não usa-se.
Desde muito cedo eu fui obrigado a entender que por mais que uma coisa possa ser chata e idiota, não faze-la pode ser ainda pior. Uma enfermeira voluntária concordou comigo, e me disse: “O meu neto também usou tampão e hoje ele não usa mais, é chato no começo mas depois você se acostuma!”
Ah! Então não é pra sempre? Perguntei.
Não, respondeu o médico, se você me obedecer e obedecer a sua mãe, antes dos 7 anos você não usa mais tampão, mais aí é você quem decide. Cirurgia, ou tampão?
Hoje eu olho pra essa cena e a única coisa que mais me chama a atenção é a besta da médica que me atendeu feito onça, parada ao fundo, de braços cruzados como se estivesse esperando o ônibus. Tudo naquela época era ainda muito novo pra mim, sempre existiram, e sempre existirão médicos pra olhar pra uma pessoa com deficiência como se ela fosse um defeito sem personalidade, sem escolha do sim, ou do não independentemente da idade ou da deficiência. Se coagir uma criança através do medo pra conseguir algo já pode ser traumatizante, imagine gritar pra uma criança de 4 anos que não anda, dizendo  que ela corre o risco de ficar cega se ela não fazer o que você mandar?
A enfermeira me deu uma bala e disse pra minha mãe não ligar, a médica era chata com todo mundo. No entanto, sempre que o meu oftalmologista estava viajando ou em cirurgia era ela quem me atendia. Quando isso acontecia a enfermeira logo me avisava, me prometia dois pirulitos caso eu tivesse paciência com a oftalmologista  e se comportasse. Já a minha mãe, prometia o meu prato favorito as oito horas da manhã, chocolate quente com pão na chapa.
Eu sentava na cadeira do oftalmo que mais parecia o trono de um rei pra uma criança de 4 anos, daí ela apagava as luzes e começava a me examinar com uma lanterna e várias lentes enquanto me pedia pra olhar as letras num cartaz na parede, aprendi a perder o medo do escuro e tomei curiosidade pelo alfabeto assim. 
Tenho saudades daquela época, acordar cedo pra fazer exames sem saber se era um médico legal ou uma megera amarga que iria me atender, se a enfermeira iria me dar um pirulito ou dois, ou se no lugar do chocolate quente eu poderia pedir um café com leite, por ter aturado uma médica que bufava quando eu me mexia. Tem gente que diz: “Se eu ganhasse um real por cada chato que me aparece” Eu ganhava chocolate quente. Mas com o passar dos anos não era a isso que eu me apegava, como dizia Cecília Meireles: “Tudo é preciso de tudo viverás” Eu aturava aquela mala sem alça porque não queria ficar cego, e não porque eu queria pão na chapa e chocolate quente, mas é claro, depois que eu tinha entendido isso, nunca contei nada pra minha mãe. Tive muito medo de ficar cego na minha primeira infância, talvez se aquele oftalmologista não tivesse se abaixado na minha frente para explicar o que estava acontecendo eu teria dado mais trabalho ainda pra minha mãe. Quando tinha 7 anos de idade perguntei pra mesma enfermeira, como pode duas pessoas serem da área da saúde, formados pela USP e serem tão diferentes, uma tão ranheta, e o outro tão legal. Então ela me disse: USP não quer dizer nada, se formar na USP não faz de você uma pessoa melhor. Ela se formou talvez por gostar de tratar de doenças, ele se formou por gostar de pessoas. Ele atendeu o meu neto cobrando um valor irrisório como se nós fossemos parentes dele, e ela nem sabe direito o meu nome até hoje. E isso não tem nada haver com a USP. 
A partir daquele dia creio que a Cecília Meireles tinha razão “Somos sempre um pouco menos do que pensávamos.
Raramente, um pouco mais.”